PRERROGATIVAS, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA!

MATO GROSSO - 23ª SUBSEÇÃO DE CAMPO VERDE

Newsletter


Ir para opção de Cancelamento

Agenda de Eventos

Dezembro de 2024 | Ver mais
D S T Q Q S S
1 2 3 4 5 6 7
8 9 10 11 12 13 14
15 16 17 18 19 20 21
22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 # # # #

Artigo | mais artigos

Lei das "Palmadas"

Data: 03/09/2010 18:00

Autor: Rosarinha Bastos

    Buscando a história da civilização humana – vamos nos abster de perpassar por toda história antiga – evidenciamos que dentre as características gerais do instituto do “Pátrio Poder” sob o regime das Ordenações Filipinas, apenas o pai exercia o referido pátrio poder.
 
    Em 01 de janeiro de 1916 foi instituído o primeiro Código Civil do Brasil, através da lei 3071, e acompanhando a tradição das legislações anteriores coube ao marido a designação de chefe da família, reafirmando o velho Código Filipino, reconhecido e legitimado em seu artigo 233: “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos”. Persistia o poder de decisão ao marido, competindo à esposa a administração do lar e a assistência moral à família. Entretanto, no referido código, o pátrio poder alcançou avanços nas correlações entre pais e filhos.
 
    Segundo Bevilaqüa: “(...) esse conjunto de direitos é apenas tutelar, no sentido de que a sua organização visa mais o interesse do filho, que, por sua idade, necessita de um guia e protetor, do que o interesse do pai, como no antigo direito”. (Bevilaqüa, Clóvis. Código Civil Interpretado. Vol. II. Rio de Janeiro. Ed. Francisco Alves. 1977. p.360.) (grifamos)
 
    Partindo dessa concepção, depreende-se uma aparente preocupação em relacionar os deveres/direitos do pai com o bem estar do filho. Nesse sentido, a autoridade paterna é exercida em função dos interesses do filho, ou seja, é uma autoridade protetora, sujeita às limitações decorrentes do bem estar do filho. Dessa forma, toda e qualquer atitude do pai em detrimento dessas limitações, é considerado abuso de direito e encontra na lei, o corretivo necessário.
 
    Da análise das normas jurídicas (evolutivas), resulta que ao direito do pai correlaciona um dever do filho e ao direito do filho um dever do pai. O Código Civil de 1916 tem por característica marcante, a hierarquia patriarcal, conforme o disposto no artigo 380. Nesse quesito, Bevilaqüa preconiza que: “Ambos os cônjuges têm sobre o filho autoridade, a ambos deve o filho respeito”.
 
    Mister observar que o artigo 395 da lei em comento dispõe que o pai ou a mãe perderá o pátrio poder por ato judicial, sempre:
“I – que castigar imoderadamente o filho; (grifamos)
II – que o deixar em abandono;
III – que praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.”
 
    Com a promulgação Constituição Federal de 1988, houve mudanças notáveis com relação à família. Destacamos o artigo 226, donde se depreende que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. A tutela da proteção à dignidade das pessoas foi um dos mais significativos efeitos dessa mudança jurídica com relação à família.
 
    Com o advento do Código Civil de 2002, “Poder Familiar” é a designação que substitui o “Pátrio Poder” do Código Civil de 1916. E, o novo Código ratifica em seu artigo 1638, o disposto no código anterior, no que tange o poder familiar:
“Art. 1638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I – que castigar imoderadamente o filho; (grifamos)
II – (...)”.
 
    Reputamos de suma importância observar que o artigo 1634 do referido Código Civil, preconiza que aos pais compete a criação e educação da pessoa dos filhos, e, em seu inciso VII dispõe que, “os pais devem exigir dos filhos que lhes prestem obediência, respeito e os serviço próprios de sua idade e condição”.
 
    Com relação ao Projeto de Lei encaminhado pelo Presidente da República e apelidado de “Lei das Palmadas”, insta ressaltar que não se trata de iniciativa do Estado Brasileiro. Ao contrário, trata-se de uma tendência mundial, com o apoio do Comitê da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, a fim de que os países tenham legislações próprias referente ao tema. Países como a Suécia, Áustria, Dinamarca, Noruega, Alemanha, Venezuela e Uruguai já adotaram a referida legislação.
 
    Nesse diapasão, o Brasil já legisla desde o advento da lei 8069/90 – ECA -, que, infelizmente, até hoje ainda não é aplicada na sua essência, ou seja, criança e adolescente detêm “prioridade absoluta” na efetivação de seus direitos (art. 227, C.F.; 4º, ECA).
 
    O Estatuto da Criança e do Adolescente, também, dispõe em seus artigos 5º, 13,18 e 70, que nenhuma criança ou adolescente será objeto de maus tratos, negligência, violência, crueldade, opressão, etc., e que todas essas formas de violência têm que ser denunciadas. O ECA, também legisla sobre o Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade de crianças e adolescentes em seus artigos 15, 16, 17:
“Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
II - opinião e expressão;
III - crença e culto religioso;
IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;
V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI - participar da vida política, na forma da lei;
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação.
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da  criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.” (grifamos)
 
    Cumpre-nos observar que a redação do Projeto de Lei em comento (“Lei das Palmadas”), refere-se a castigos corporais (ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em dor ou lesão à criança o adolescente), ou tratamento cruel ou degradante (conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou  o adolescente), como formas de correção, disciplina, educação, ou qualquer outro pretexto.
 
    Oportuno salientar, que o Projeto não se refere apenas aos pais, mas também, aos integrantes da família ampliada, aos responsáveis ou qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar a criança ou o adolescente. O referido Projeto ratifica as garantias constitucionais e estatutárias no que diz respeito às Políticas Públicas na área da infância e adolescência. A redação deixa claro que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem atuar de forma articulada tanto na elaboração como na execução das políticas públicas destinadas a coibir o uso de castigos corporais e de tratamento cruel e degradante.
 
    Nesse sentido, os entes federativos devem promover campanhas educativas com relação ao tema, incluir nos currículos escolares (em todos os níveis), conteúdos referentes aos direitos humanos e com relação à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente; deve promover a formação continuada dos profissionais que atuam na área da infância e adolescência, bem como a integração dos órgãos que trabalham todas as questões afetas à população infanto-juvenil. Em Cuiabá, esses órgãos encontram-se aglutinados no Complexo Pomeri.
 
    Interessante observar que, o agressor que não cumprir as medidas previstas no artigo 129 e 130 do ECA, tais como: inclusão em programa oficiais de auxílio à família, orientação e tratamento (álcool, tóxicos, etc.), poderá ser afastado  da moradia comum, conforme a inclusão do parágrafo único no artigo 130 do ECA, através do projeto de lei que ora comentamos.
 
    No nosso entender, o disposto no Projeto de Lei em comento, apenas ratifica as legislações internacionais e nacional. Em nenhum momento vislumbramos alusão às “palmadas”, e, sim, e isso está claro, alude-se ao tratamento cruel e degradante e castigos físicos corporais, conforme nos referimos alhures.
 
    Já se comprovou nas áreas da psicologia e da psicopedagogia, que as violências físicas e psicológicas não educam ninguém. Seria ignorância pensar dessa forma. Ao contrário, pesquisas estatísticas apontam que crianças que sofrem esses tipos de violência ficam mais vulneráveis e com maior probabilidade de desenvolver distúrbios emocionais, como transtornos psiquiátricos, etc. E, o Projeto que ora comentamos, visa justamente isso, que crianças e adolescentes cresçam livres dessas formas de violência, que no nosso país é garantia constitucional.
 
    Através do exercício profissional, no nosso cotidiano observamos (sem dúvida alguma) que os castigos físicos impostos às crianças e adolescentes, configuram total violação dos direitos humanos. E, nesse sentido, a proteção recorrente é dever de Estado.
 
    Todavia, cumpre-nos observar a distinção entre violência e contenção, de modo a não permitir que as crianças e adolescentes cresçam sem limites, desempoderando seus pais, responsáveis e educadores, ameaçando-os na  formação de seus filhos, alunos, etc.
 
    Urge que tenhamos conhecimento do disposto no artigo 227 da Constituição Federal, que além de garantir a “prioridade absoluta” à criança e ao adolescente, legista que eles devem ser colocados a salvo “de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão”.
 
    Não há direitos sem obrigações e vice-versa. Entretanto aqui, estamos tratando com pessoas humanas em desenvolvimento (físico, psíquico, moral e social), ou seja, crianças e adolescentes encontram-se em situação especial e de maior vulnerabilidade, o que lhe outorga um regime especial de salvaguardas, permitindo-lhes desenvolver suas potencialidades em plenitude.
 
    E, a convivência familiar (artigo 227, caput, C.F.) é essencial como direito fundamental específico da criança e do adolescente, portanto figura como um dos direitos da personalidade infanto-juvenil, inerente apenas a essa fase da vida, pois tem a ver com a personalidade de crianças e adolescentes, não com a personalidade de adultos.
 
    Na realidade, o ideal seria que cada família chegasse a um consenso quanto à educação de seus filhos e os criasse da melhor forma possível, criando-os saudáveis e hábeis para enfrentar o mundo competitivo que temos à nossa frente. Como dizia o poeta Petit Senn: “Os filhos tornam-se para os pais, segundo a educação que recebem, uma recompensa ou um castigo...”
 
* Rosarinha Bastos é advogada militante. Especialista em Direito da Criança e do Adolescente, presidente da Comissão da Infância e Juventude da OAB/MT. Contato: www.soscriancaeadolescente.com.br
WhatsApp